sexta-feira, novembro 25, 2005

Curso de Actores

Porque a vida é um palco, junto a minha primeira peça de teatro woodyliana.


RAPAZ: Bom dia.
HOMEM: Bom dia.
RAPAZ: Queria fazer a inscrição.
HOMEM: Diga?
RAPAZ: A inscrição no curso?
HOMEM: Qual curso?
RAPAZ: O curso de actores.
HOMEM: Não estou a compreender.
RAPAZ: Ou muito me engano ou lá fora encontra-se um enorme cartaz que diz: “Novos cursos para actores. Inscrições abertas.” E eu queria inscrever-me.
HOMEM: Não é possível.
RAPAZ: Não me diga que já não há mais vagas?
HOMEM: Calma...
RAPAZ: Não me vai dizer que uma simples taxa de ocupação vai destruir os meus sonhos. (o RAPAZ ajoelha-se). Por favor, por favor, eu quero tanto ser actor.
HOMEM: Você até tem jeito para as rimas mas eu vou dar-lhe uma boa razão porque é que isso não é possível: você está numa Repartição das Finanças!
RAPAZ: An?
HOMEM: Olhe bem para a sua volta: um balcão de atendimento que que separa os utentes dos funcionários, secretária, computador, monitores e papeis, muitos papéis porque estamos a tratar de IRS, IRC, IMI e afins. E se reparar bem, até temos senhas de várias cores à entrada.
RAPAZ: Mas eu juro que lá fora está um cartaz enorme, brutal, quase do tamanho do edifício que indica o local das inscrições: aqui!
HOMEM: Aqui, só aceito inscrições para pagar impostos. Quer um impresso?
RAPAZ: Mas eu não sou doido, também não sou cego. Isto aqui até pode parecer uma Repartição das Finanças mas lá fora está mesmo o cartaz.
HOMEM: Bem, eu até estou a estranhar a falta de utentes. Isto está muito calminho hoje. Todos os dias é um corropio de gente. Tenho sempre a casa cheia e você foi o primeiro utente a entrar. Porventura o tal cartaz está a afastar os contribuintes da nossa distinta repartição. Um momento que enquanto eu averiguo, chamo alguém para vir prestar algum esclarecimento que precise em matéria fiscal.

(e virando-se para dentro, o Homem chama por outro funcionário. Surge o Santos. O Homem sai de cena.)

SANTOS: Bom dia.
RAPAZ: Bom dia. Isto hoje está de doidos.
SANTOS: Eu não sei o que você esteve a falar com aquele homem mas – antes que ele volte - vá por mim e não lhe dê ouvidos.
RAPAZ: Diga?
SANTOS: Não lhe dê ouvidos. O homem não regula bem. Há meses a empresa contratou-o e descobrimos agora que ele tem ligeiros problemas de parafusos, percebe?
RAPAZ: Quer dizer que...
SANTOS: Exacto. É um louco. Atenção, ele vem aí. Disfarce.

(O Homem aproxima-se)

HOMEM: O que o senhor diz é verdade. Está mesmo um enorme cartaz lá fora, a ocupar toda a parede da minha Repartição. Ó Santos, você sabe quem é que foi o responsável?
SANTOS: Lá está você a delirar. Vá lá tomar os medicamentos que o médico lhe receitou. Você sabe perfeitamente que não trabalha numa Repartição. Quantas vezes já lhe disse que o seu trabalho é temporário e resume-se a fazer as folgas da senhora Luísa que faz o atendimento do nosso consultório?
RAPAZ: Consultório?
SANTOS: A definição será um local onde auxiliamos, apoiamos, ajudamos e prestamos cuidados médicos básicos.
RAPAZ: Desculpem-me mas eu não estou a perceber nada.
HOMEM: Sim, eu também não percebo o que é que você faz do lado de lá do balcão da minha Repartição?
SANTOS: O senhor, não lhe dê ouvidos. Olhe bem à sua volta: um balcão de atendimento, uma secretária, um computador de mesa para as marcações das consultas e os indispensáveis papéis que são as fichas dos nossos clientes. Eu estou vestido de bata branca e temos senhas de várias cores à entrada para as manhãs das análises clínicas. E até se sente um cheiro a éter no ar. Estamos num Consultório, ou não?
RAPAZ: Mas o senhor tem lá fora um cartaz afixado que que diz “Novos cursos para actores. Inscrições abertas.”
SANTOS: Ah, estou a ver que o senhor procura um especalista em oftalmologia. Pois essa especialidade de momento está indisponível. Ó Homem, este senhor já tem ficha aberta no sistema?
HOMEM: Nas Finanças tem. Agora estou-me nas tintas se ele tem ficha no seu suposto consultório.
RAPAZ: Vocês estão-me a deixar louco. Oiçam que eu vou falar devagarinho para ver se entendem: Eu lá fora vi um cartaz que anuncia Cursos para Actores. E eu só me quero inscrever.
SANTOS: Que disparate!
HOMEM: Não, é mesmo verdade. Está um cartaz lá fora que eu vi com os dois olhos que a terra há-de comer.
SANTOS: Ó Homem, eu sei muito bem que os efeitos secundários dos medicamentos incluem miopia e um ligeiro atraso na compreensão visual da realidade.
HOMEM: Ai é? Vai uma aposta? Vamos lá fora.....
SANTOS: O que é que acontece, hein?
HOMEM: Estás com miaúfa?
SANTOS: Vá, diz lá o que acontece, ó cobardolas?
HOMEM: Se eu ganhar a aposta isto passa a ser uma Repartição e você leva o seu Consultório para outro lado. E se eu estiver errado trespasso-lhe o espaço e você faz dele o que quiser.
SANTOS: Apostado. Vamos lá então.

(saem os dois. O Rapaz está com as mãos na cabeça. Não se apercebe de que um outro jovem surge por debaixo do balcão de atendimento)

JOVEM: Aqui não está. Bolas, onde é que eu meti aquilo? Querem ver que eu o perdi? Ainda por cima é grande, é fácil de perder.
RAPAZ: Quem é você?
JOVEM: Isso é o que eu pergunto. O que é que você faz no meu estaminé?
RAPAZ: Estaminé?
JOVEM: Sim, veio levantar algum trabalho?
RAPAZ: Não, eu só queria um papel.
JOVEM: Então veio parar ao sítio certo.
RAPAZ: Não me diga que é você o responsável pela distribuição dos papeis? Agora isto começa a compor-se. Finalmente, isto parecia uma casa de doidos.
JOVEM: Sim, isto por vezes complica-de uma maneira e entra para aí com cada maluco que nem imagina. Bem, mas voltando à vaca fria. Além de outras coisas também sou responsável pelos papeis. É que há trabalhos especiais que requerem papéis especiais, lá isso é verdade.
RAPAZ: Bom, então qual é o papel que me vai calhar?
JOVEM: Bem, para responder a esa pergunta preciso de saber qual é o trabalho que quer fazer.
RAPAZ: Trabalho no sentido de “profissão”? Gostaria de ter o papel de vilão.
JOVEM: Vilão? Não conheço. Mas temos outros igualmente bons.
RAPAZ: Ok, estou a ver que já tem os melhores papéis distribuídos para os outros.
JOVEM: Espere lá que eu não aprecio esse tipo de insinuações. Aqui eu arranjo sempre bons papéis. Seja para quem for. Não faço distinções entre as pessoas. Estou a ver que vamos ter de fazer isto ao contrário. Vamos fazer o seguinte: o senhor escolhe primeiro o papel e depois diz qual é o trabalho que quer fazer. (o Jovem tira um catálogo debaixo do balcão). Escolha lá o papel.
RAPAZ: Mas o que é isto? São folhas em branco! Onde é que está o texto?
JOVEM: Então, o normal é você trazer o texto. Mas se quiser serviço de redactor também se arranja, tenho um primo que se desenrasca bem nas letras.
RAPAZ: Mas é normal isto vir asssim?
JOVEM: Queria o quê? Isto é um catálogo de papéis. Olhe tem aqui um papel Brilhante, este é mais Mate, este é um Conqueror, este tem uma gramagem maior, é parecido com o Canson. Passe aqui a mão para ver esta regusidade...
RAPAZ: Está a gozar comigo, não está?
JOVEM: Tsss...tem razão. Que parvoíce a minha. Vê-se logo que o senhor é uma pessoa que se preocupa com o meio-ambiente e com as gerações futuras. A ver se encontro o catálogo dos papéis reciclados.
RAPAZ: Não acredito. Você está mesmo a gozar comigo!
JOVEM: Não, eu acho é que o senhor está a gozar comigo. Vem aqui à minha tipografia, pede papéis, agora olha para eles e diz que já não quer? Você é filho único, não é?
RAPAZ: Tipografia?
JOVEM: Sim, fazemos trabalho de impressão em todos os formatos. Desde o folheto, papel de carta, envelope até ao cartaz e telas gigantes. Veja lá bem à sua volta: um balcão de atendimento, uma secretária com computador para abrir os trabalhos dos clientes e agora comprámos aquele sistema de senhas à entrada por causa das fotocópias.

(Entretanto chegam o Homem e o Santos. O Homem vem com um sorriso estampado de orelha a orelha.)

HOMEM: Ena, chegou mais um utente à minha repartição de Finanças.
JOVEM: Diga?
SANTOS: É verdade, isto passou de consultório a Repartição de Finanças. Aqui o Homem ganhou a aposta. Está mesmo um cartaz lá fora.
JOVEM: Um cartaz? Lá fora onde?
HOMEM: A ocupar a frente do edifício da minha Repartição.
JOVEM: E diz “Novos Cursos de Actores. Inscrições abertas”?
SANTOS: É esse mesmo.
JOVEM: Ah, onde é que eu ando com a cabeça? Julgava-o perdido e estava afixado.
HOMEM: Quer dizer que aquele cartaz é seu?
JOVEM: Não é bem meu. É um trabalho de impressão que tive de fazer. Mas agora preciso de o tirar de lá não vá o cliente chegar para o levar.
RAPAZ: Quer dizer que não aceitam inscrições para actores?
HOMEM: Disparate. Eu já lhe disse que isto é uma Repartição.
JOVEM: É uma tipografia.
SANTOS: E já foi um consultório.
RAPAZ: Calem-se. Já nem os posso ouvir. Ahhhhhhh!!!!

(o Rapaz agacha-se, agarra os cabelos com as mãos. O silêncio toma conta do cenário).


HOMEM: Ok. Quanto tempo?
JOVEM: Vinte e quatro minutos e quatorze segundos.
SANTOS: É um novo recorde!
HOMEM: Conseguimos enganar aqui o puto cá com uma pinta.
RAPAZ: Então isto era tudo a brincar?
HOMEM: Eh pá, tu estiveste bem hoje. Gostei muito da tua interpretação. Adorei aquela parte da “Oftalmologia”. Improvisaste bem aí.
SANTOS: Obrigado, mas hoje tu estiveste imparável. Encomenda o Oscar. Já não posso dizer o mesmo do tipógrafo, houve ali umas falhas.
RAPAZ: Quer dizer que vocês são actores?
JOVEM: Eu sei, tenho sempre chatices na parte do catálogo dos papéis.
SANTOS: Precisas de sentir mesmo na pele de um tipógrafo. É a tua primeira capa.E o público precisa de acreditar.
JOVEM: Não me sinto confortável como tipógrafo. Preferia ser o farmacêutico. Gosto mais dos textos.
HOMEM: Hum, não me parece. Mas acho que já encontrámos o nosso farmacêutico. Dá lá um impresso de inscrição ao rapaz.
RAPAZ: An?
HOMEM: Precisamos de levar isto mais longe. Utilizando o mesmo cenário pensámos em criar mais uma personagem e uma situação em direcção ao pathos. E quem sabe até onde poderemos ir? Como é, as inscrições estão abertas!
RAPAZ: Não tem nada com vilões?
HOMEM: E ele a dar-lhe com os vilões. Deixa cá ver o que eu tenho aqui nos rascunhos. (começa a folhear vários papeis que retira de cima da secretária) Hum...hum... Estou aqui a ver uma alternativa. Podíamos abandonar o Farmacêutico e passar logo para a cena do Bancário. E depois entra o Assaltante.
RAPAZ: Eu gostava de ser o Assaltante.
SANTOS: Hum. Até acho que tens perfil. Mas então precisamos de arranjar mais um actor.
HOMEM: Chiu, estou a ouvir passos. Alguém acaba de entrar. Rápido, aos vossos lugares.
RAPAZ: O que é que eu faço?
HOMEM: Por agora ficas com o Farmacêutico. É o papel que há. Rápido.
RAPAZ: E o texto?
SANTOS: Desenrasca-te. É o que todos fazemos. O curso é assim. Escondam-se.

(todos se escondem excepto o Funcionário das Finanças. Nesse instante entra uma rapariga).

RAPARIGA: Bom dia.
HOMEM: Bom dia.
RAPARIGA: Queria fazer a inscrição.
HOMEM: Diga?
RAPARIGA: A inscrição no curso?
HOMEM: Qual curso?

(o pano cai)

2 comentários:

Reinu disse...

dá para publicar a sinopse??

Sérgio Mak disse...

Confesso que não li o post todo, como todo o bom calão vou esperar pelo filme...no entanto parece-me haver aqui matéria prima kafkiana...