Acordei com uma sensação esquisita na boca. Apetecia-me cuspir. E quando me preparo para levar a mão à boca para tentar perceber o que era, reparo que não tenho braços. Em sobressalto olho e vejo que não tenho mãos. E depressa descubro porque raio acordei com uma sensação estranha na boca. Estou coberto de pêlos. Castanhos. Curtos. Tento cuspir as pilosidades mas cedo me apercebo que é uma tarefa impossível. Também não tenho boca mas a sensação percorre todo o meu corpo. O meu coração agita-se enquanto eu, sem me conseguir mexer, tento perceber o que se passa à minha volta. Descubro que, afinal, só consigo ver, que o meu corpo é uma massa coberta de pêlos, castanhos, curtos. E tenho o chão bem perto de mim. Tudo ganha novas dimensões e não estou a achar piada nenhuma a esta situação kafkiana. Penso para comigo, ok, és um monte de pêlos, não tens corpo, só consegues ver, no entanto sentes qualquer coisa. O que é aquilo? Meu Deus, são unhas, é uma pata! Olho para cima e vejo um focinho de cão, maior que eu. E não é que o focinho vem com o restante equipamento de série: olhos, orelhas em bico, saliva que escorre abundantemente e mais pêlos. Pêlos? Até onde a vista alcança, vejo que acima de mim está uma cabeça de um cão. Os meus olhos descem e encontram-me. Olho para baixo e vejo o soalho flutuante. Tento não acreditar mas as evidências provam um cenário impossível. Tudo indica que acordei dentro de uma pata dianteira de um cão. Se tivesse boca – que descobri afinal não ter – teria gritado. Mas bastou apenas pensar para ouvir vozes:
-João, és tu?
-Sim?? Quem fala?
-Quem fala? Parece que estás ao telefone, és muito parvo!
-Desculpe lá sim, mas acho que acordar dentro de uma pata de um cão é de um gajo desaprender a falar, ou não?
-Eh...também não é preciso seres assim tão bruto. Olha para mim...
Meu Deus, o que faz aqui a mulher da minha vida?
-Kapa, o que é que tu fazes aqui?
-O mesmo que tu. Estou a servir de pata dianteira.
-Não percebo. Falas como se isto fosse a coisa mais normal do mundo.
-Calma. É estranho agora. Mas o tempo faz com que olhes para o medo de outra forma. do medo cria-se um hábito. Adaptabilidade, sabes o que é?
-Era o que me faltava agora, questões metafísicas quando me sinto preso dentro de uma pata dianteira de um cão que não conheço de lado nenhum. Sou só eu mas parece que tu não te preocupas com isso. Aliás, como é que viémos cá parar?
-E para que é que isso interessa? Agora és uma pata dianteira de um cão. Podia ser pior.
-Pior que isto? Que piada...
-Pergunta ali ao Motas...
-O Motas está cá?
-Sim, no fundo, foi o que teve mais sorte. Calhou-lhe a pilinha...
-Cabrão, sortudo....
-Sorte? – ouviu-se mais atrás – Chamas a isto sorte?
-Motas? És mesmo tu?
-Sou, João.
-Eu não me consigo virar. Só te consigo ouvir. Com que então a pila de um cão? Eu bem te dizia que um dia irias ser grande. Acho que há uma certa ironia no Criador desta história.
-Mas isto não é sorte. Passas o dia com urina na boca e a introduzires-te em desconhecidos.
-Mas ao menos isso dá-te algum prazer, não?
-Qual quê? Sou apenas um músculo, a parte do prazer está no cérebro. O cabrão que ficou com o cérebro é que teve sorte.
-Alguém sabe quem é? Conhecem?
-Não, a Kapa já tentou falar mas não respondem de lá. Cá para mim este cão é acefalo.
-Duvido mesmo que alguém tenha ficado com o cérebro. Mas olha, sabes quem é que está por cá?
-Quem?
Nesse instante o focinho mexeu-se e o cão começou a arfar. Reconheci-a logo mal a língua saiu da boca do bicho:
-Vermelha, és mesmo tu?
-João? Estava mesmo curiosa por saber quem é que iria ficar com a pata da frente. Ainda bem que és tu. No outro dia estávamos a falar e não imaginas os nomes que surgiram.
-Mas esperem aí. Isto parece que vocês estão em casa. Há quanto tempo é que estão aqui?
-Eu fui o primeiro a chegar, depois apareceu a Vermelha, a Kapa e tu foste o último.
-João – interrompeu a Vermelha – no outro dia estávamos a tentar interpretar esta situação. Imagina que isto é um sonho e que contavas isto a um psicólogo, qual seria a sua interpretação?
-Vocês julgam que isto é um jogo? Um teste psicológico da revista Maria? Bolas, pareço ser o único que se preocupa pelo facto de ser um pata de um cão. Não te vejo preocupada por ser uma língua.
-Bom, sabes que muitas vezes vou ali fazer umas festas ao Motas.
-E isso é a melhor parte do meu dia, ao menos posso estar com ela um bocadinho. Já te tinha dito que gosto muito dela?
-Sim, não ouço eu outra coisa.
-E repara tu estás na pata direito do cão. És um motor.
-Também a Kapa...
-É verdade, já viste a coincidência? Vocês estão juntos. A puxarem por nós.
-Sim, mas repara que não estamos juntos. Há um corpo que nos separa. Em comum somos apenas duas patas. Se um psicólogo estivesse ouvido esta conversa diria que estamos condenados a olhar um para o outro, e andar com passos dissincronizados.
-Eu não viria as coisas assim, João. – interrompeu a Kapa – Somos patas e isso é o que importa.
-Bolas, o que é que está a acontecer?
O cão levantou-se e começa a espreguiçar-se. Senti todos os meus músculos. Tremi, dói-me o corpo todo. A Kapa falou:
-Bom, agora é que isto vai aquecer.
-Aquecer, como assim?
-Vamos fazer um bocadinho de ginástica. Ele agora vai para a rua.
-Sim?
-E nós somos as patas... duh??
-Continuo sem perceber...
-Parvo. Vamos correr.
-Ah, então é por isso que estás tão em forma. Por acaso, estás fantástica.
Kapa cora, não consegue esconder.
-Bem, vamos lá embora.
-Ui...Ui..UI...isto doi. Vamos estar sempre a correr?
-Tens de te habituar. Custa ao início mas depois é como estar num tapete de um ginásio qualquer.
-Kapa?
-Sim?
-Quando a Vermelha decidir ir lamber...
-Não te preocupes. Não vais ver nada porque normalmente o cão alça as patas da frente tapando a visibilidade. Quer dizer, pelo menos do meu ponto de vista.
-Espero que tenhas razão.
O cão passa a porta. Eu corro para um lado, a Kapa corre para outro. A descoordenação gera movimento. A Física faz sentido. O Motas anda aos solavancos, ao sabor da velocidade, a Vermelha vai solta e descaída na boca. Não deve estar a achar muita piada já que um rio de saliva percorre toda a sua extensão.
O cão corre, salta, passeia, cheira postes, carros, jantes, outros caes. Pelos ruídos que oiço do Motas, este canídeo tenta muitas vezes travar conhecimentos com outros cães. Ainda não passaram 5 horas e este cão já fez mais amizades que eu numa vida inteira. Velhotas são em barda, crianças afagam as orelhas, gajas boas passam a mão pelo pêlo, gajas feias dão beijos no focinho. Estou a odiar fugir dos calhaus dos putos, das bengalas dos velhos e descobri agora que tenho de fugir é de um outro cão. Bem maior, mais feroz e muito mais veloz.
-João, corre por tudo!!!
-Kapa, tem calma. Não me apetece.
Esta indecisão no passo fez com que o cão comecasse a coxear.
-João, o outro cão está cada vez mais perto...
-Calma Kapa, se ele morder, morde o rabo deste, nunca vai morder uma pata da frente.
E quando eu digo isto oiço o Motas gritar.
-Acho que ele acabou de morder outra coisa.
-Ok, ok, já percebi. Vamos então para ali.
-Qual quê? Vamos para a esquerda.
-Kapa, isso é ir para a estrada. Não achas que é perigoso?
-Perigoso é ter este cão atrás de nós.
-Kapa, João – ouvimos a Vermelha – vamos atravessar a estrada, rápido.
Assim é justo. Vamos então lá atravessar essa estrada.
-Vermelha? Podemos ir?
-Espera.... Agora, corram depressa.
Comecei por correr mas rapidamente dei comigo a voar. O chão ficou cada vez mais distante. Todo o meu corpo doía. Quando voltei a encontrar o chão senti aquela sensação estranha de pêlos na boca. Não ouvi vozes. Mas ninguém me precisava dizer que não iria sobreviver ao acidente. Vida de cão.
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